Para Slavoj Žižek, filósofo,
os “Panama Papers” revelam: sonegar, esconder dinheiro e
especular não são perversidades de gananciosos – mas a regra do jogo, no
sistema.
O artigo é publicado por Outras Palavras,
13-04-2016. A tradução é de Antonio Martins.
Eis
o artigo.
A única coisa de fato surpreendente no vazamento dos Panama Papers é que não há, neles, surpresa
alguma. Eles não mostraram exatamente o que esperávamos encontrar? Sim, uma
coisa é saber sobre contas offshore em geral, e outra é ver a prova
concreta. É como se alguém soubesse que seu parceiro está saindo com outra
pessoa – é possível aceitar a consciência abstrata do fato, mas a dor emerge ao
saber dos detalhes picantes. E ao ter contato com as fotos… Agora, com os Panama Papers, estamos chocados com algumas das imagens
sujas da pornografia financeira dos super-ricos, e não podemos mais fingir que
não sabemos.
Em 1843, o jovem Karl Mark afirmou,
sobre o ancien régime alemão: “imagina que acredita em si mesmo e pede que o
mundo imagine o mesmo”. Em tal situação, apontar a vergonha dos poderosos
torna-se uma arma. Ou, como prosseguia Marx, “para que a
pressão torne-se mais intensa é preciso acrescentar a ela a consciência da
pressão; para tornar a vergonha mais vergonhosa, é preciso torná-la pública”.
Esta é, hoje, nossa situação: defrontamo-nos com o cinismo
desavergonhado da ordem global, cujos agentes apenas imaginam que acreditam em
suas ideias de democracia, direitos humanos, etc; mas por meio de vazamentos
como os do WikiLeaks ou dos Panama Papers, a
vergonha – nossa vergonha por tolerar tal poder sobre nós – torna-se mais
intensa ao vir a público.
Uma rápida olhada nos Panama Papers revela
algo muito bom e algo muito ruim. O positivo é a solidariedade geral dos
participantes. No mundo nebuloso do capital global, todos são irmãos. O mundo
ocidental desenvolvido está lá, incluindo os impolutos escandinavos, e eles dão
as mãos a Vladimir Putin. O presidente
chinês, Xi, o Irã e a Coreia do Norte também comparecem. Muçulmanos e judeus
trocam piscadelas amistosas – é um reino verdadeiro de multiculturalismo, onde
todos são iguais e todos diferentes. O lado negativo: a comovente ausência dos
Estados Unidos, o que dá alguma razão às alegações de russos e chineses,
segundo os quais há interesses políticos associados ao vazamento.
Mas então, o que temos a ver com
todos estes dados? A primeira reação (e a predominante) é a explosão de raiva
moralista, é claro. Mas o passo indispensável é mudar de assunto imediatamente,
da moral para nosso sistema econômico: políticos, banqueiros e executivos
sempre foram gananciosos. A questão é: o que há em nosso sistema legal ou
econômico que lhes permite realizar esta ganância com tanta desenvoltura?
A partir do colapso financeiro de 2008, figuras
públicas, a partir do Papa, bombardeiam o
mundo com apelos para lutar contra a cultura de ganância e consumismo. Segundo
um dos teólogos próximos ao Papa, “a atual
crise não é uma crise do capitalismo, mas da moralidade”.
Mesmo setores da esquerda seguem esta trilha. Não há falta de anticapitalismo,
atualmente. Os protestos do Occupy explodiram
há alguns anos, e continuamos a assistir uma sobrecarga de crítica aos horrores
do sistema. Abundam livros, reportagens em profundidade nos jornais e vídeos na
TV sobre como as corporações poluem desregradamente a natureza; ou como
banqueiros corruptos continuam a ganhar bônus milionários, enquanto seus bancos
são salvos com dinheiro público; ou sobre fábricas insalubres onde crianças
trabalham em jornadas desumanas.
No entanto, há uma armadilha em todo este fluxo de crítica: não se
questiona o quadro democrático-liberal em que se dá a luta contra tais
excessos. O objetivo, explícito ou implícito, é democratizar o capitalismo,
estabelecer controle democrático da economia, por meio da pressão da mídia, de
leis mais duras, de investigações policiais honestas. Mas o sistema como tal
não é questionado, e seu quadro institucional de “estado de Direito” permanece
como vaca sagrada, que não é questionada sequer pelas formas mais radicais de “anticapitalismo ético”, como as do movimento Occupy.
Para compreender qual erro é preciso evitar, vale lembrar de uma
história – talvez apócrifa — do economista John Galbraith,
keynesiano de esquerda. Antes de uma viagem à União Soviética, no final dos
anos 1950, ele escreveu para Sidney Hook, um
amigo anticomunista. “Não se preocupe, eu não serei seduzido pelos soviéticos,
nem voltarei dizendo que eles vivem sob o socialismo”. Hook respondeu de imediato: “É isso que me
preocupa: que você volte contando que a União Soviética não é socialista!” O
que preocupava Hook era a defesa ingênua da
pureza do conceito: se a construção de uma sociedade socialista fracassou, isso
não invalida a ideia em si – apenas demonstra que ela não foi adequadamente
realizada. Não é possível detectar a mesma ingenuidade nos fundamentalistas de
mercado de hoje?
Há alguns anos, o intelectual francês Guy Sorman afirmou,
num debate na TV, que a democracia e o capitalismo necessariamente andam
juntos. Não resisti a perguntar: “mas e a China?” Sorman retrucou: “Na China,
não há capitalismo!” Para ele, um defensor fanático do capitalismo, se um país
não é democrático, isso automaticamente significa que não pode ser
verdadeiramente capitalista. Adota uma versão deturpada, exatamente como, para
um comunista democrático, o stalinismo era, apenas, uma forma não autêntica de
comunismo.
Não é difícil identificar o erro subjacente. É o mesmo de um chiste conhecido:
“Minha noiva nunca estará atrasada para um encontro, porque no momento em que
estiver, não será mais minha noiva”. É assim que os defensores da sociedade de
mercado explicam hoje a crise de 2008: não foi o fracasso do livre mercado
que a causou, mas o excesso de regulação estatal, ou seja, o fato que nossas
economias de mercado não eram autênticas, ainda tinham traços de Estado de
Bem-estar Social. A importância dos Panama Papers é,
precisamente, mostrar a falsidade desta alegação. A corrupção não
é um desvio contingente do sistema capitalista global – é parte essencial de
seu funcionamento.
A realidade que emerge do vazamento é
uma divisão de classes, muito simples de compreender. Os documentos demonstram
como os super-ricos vivem num mundo à parte, em que vigoram outras regras, em
que o sistema legal e a ação da autoridade policial são inteiramente
distorcidos, não apenas para proteger os ricos, mas para moldar o sistema legal
de forma a acomodá-los.
Já começaram a surgir reações da direita liberal aos Panama Papers. Elas jogam a culpa nos excessos do Estado
de Bem-estar Social, ou no que resta dele. Alegam que, como os ricos são
pesadamente tributados, eles naturalmente tentam deslocar-se para países com
impostos mais baixos, o que não é, em última instância, ilegal. Embora
ridículo, este argumento tem um núcleo de verdade, e chama atenção para dois
pontos. Primeiro, a linha que separa as transações legais das ilegais está se
apagando muito rapidamente, e com frequência se reduz a uma diferença de
interpretação. Segundo, proprietários de riqueza que deslocaram suas fortunas
para contas offshore e paraísos fiscais não são
monstros de ganância, mas indivíduos que apenas agem como sujeitos racionais
que tentam proteger sua riqueza. No capitalismo, não é possível jogar a água
suja da especulação financeira e ficar com o bebê saudável da economia real. A
água suja é, na verdade, a linhagem do bebê saudável.
Não deveríamos ter medo de ir até o fim. O sistema legal do capitalismo
globalizado é, na sua dimensão mais fundamental, a corrupção legalizada. A questão de onde começa o crime
(que operações financeiras são ilegais) não é um tema jurídico, mas
eminentemente político, relacionado a relações de poder.
Então, por que milhares de capitalistas e políticos fazem o que está
revelado pelos Panama Papers? A resposta é a mesma
da piada vulgar. Por que os cachorros lambem suas bolas? Porque eles podem…
Acesso em: 14 abr 2016
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