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AS MULHERES POR CIMA:

APONTAMENTOS SOBRE A IDEIA DE DESREGRAMENTO FEMININO NO INÍCIO DA EUROPA MODERNA E A INVERSÃO SEXUAL COMO MODO DE RESISTÊNCIA

  




Natalie Zemon Davis é uma historiadora estadunidense e canadense, nascida na cidade de Detroit, no estado de Michigan, Estados Unidos. Após ter realizado a sua graduação no Smith College e o seu mestrado no Radcliffe College, no ano de 1959, ela conclui seu doutoramento na Universidade de Michigan, estudou também na Universidade de Harvard. Foi professora em diferentes universidades como a Universidade de Princeton, a Universidade Brown, a Universidade da Califórnia e a Universidade de Toronto. Suas pesquisas, enquanto historiadora, incluem trabalhos importantes como Trickster Travels3, The Gift in Sixteenth-Century France The Return of Martin Guerre5 e Women on the Margins: Three Seventeenth-Century Lives. Davis recebeu diversos prêmios e reconhecimentos como o grau honorário da Universidade de St. Andrews e a National Humanities Medal. Ambas as condecorações lhe foram entregues no ano de 2013. Na década de 50 do século XX, a autora sofre perseguição por parte do estado americano, obrigando-a a se mudar para o Canadá.

Durante sua juventude, a autora tem uma certa aproximação com a teoria marxista, o que a faz desenvolver uma simpatia pela esquerda política. Seus interesses de pesquisa é História Social e Cultura, porém é adepta da interdisciplinaridade, portanto, dialoga com a Micro História, Antropologia, Etnografia, Arte e Teoria Literária (CARVALHO, 2020).

Pioneira na historiografia das mulheres, nos anos 50 escreve sobre Christine de Pizan, uma poetisa e filósofa italiana que ganhava a vida com seus escritos. No ano de 1974, Davis publica, na segunda Berkshire Conference on Woman History, um ensaio que posteriormente se torna referência nos estudos históricos de gênero (CARVALHO, 2020).

Vale ressaltar que o texto aqui resenhado, segundo a própria autora, é um texto-ensaio, pois aborda questões específicas e limitadas acerca das mulheres. Outro detalhe importante e que mostra sua interdisciplinaridade, é que a autora recorre a autores da antropologia para estudar e compreender algumas questões na Europa e França modernas (ARANTES, 1990).

Portanto, o texto resenhado leva o título: as mulheres por cima, e é o quinto capítulo da obra: Cultura do povo: Sociedade e Cultura no início da França moderna. O livro Cultura do povo (1990) que é endereçado ao público acadêmico e intelectuais, estuda a Idade Moderna na França, dedicando alguns capítulos ao estudo das mulheres, sendo um deles o texto aqui resenhado (CARVALHO, 2020).

A autora estuda especificamente, nesse capítulo, a “função das inversões rituais” (ARANTES, 1990), com o intuito de mostrar que, assim como a inversão literária e a festiva na Europa pré-industrial não foram somente um produto hierárquico estável, mas também de transformações na “[...] alocação do poder e da propriedade, também essa inversão pôde oferecer novas formas de pensar sobre o sistema e de reagir a ele” (DAVIS, 1990, p. 121). Assim, na primeira parte da obra a autora empreende um caminho mais teórico, já na segunda, tenta esmiunçar a ideia de mulher desregrada.

  Nesse sentido, o objetivo inicial e principal da autora é fazer uma demonstração esclarecedora sobre suas ideias de inversão sexual e figura da mulher desregrada na Europa do início da modernidade. Pois há, nesse período, uma visão da mulher como “desregrada por natureza”. Essa é uma visão em torno da religião, que defende que esse desregramento tem origina em Eva como fonte da entrada do pecado no mundo.  

Nessa mesma linha de pensamento, o homem também poderia ser desregrado, entretanto, o desregramento do homem diferente da mulher, pois seria de cunho social como, por exemplo, a prática da mentira, mal caratismo, entre outros.

Além de ser natural, o desregramento da mulher em torno da religiosidade do início da modernidade, que é uma herança medieval, seria também fisiológico, ou seja, estaria ligado ao seu corpo, o que faz com que a mulher seja histérica.

Entretanto, a visão das mulheres da época em relação ao que os homens pensavam delas é polivalente, ou seja, podem adquirir diversas interpretações, sobretudo no sentido de se apropriarem da visão masculina em relação a elas para empreenderem formas de resistências ao patriarcalismo, machismo, entre outros. Desse modo, as mulheres vão ganhando espaço nesse contexto extremamente hostil a elas.

Os exemplos que a autora traz no texto, de mulheres se vestindo de homens, são provas de como elas invertem a seu favor, o sentido da mulher desregrada na visão masculina, bem como das maneiras em que elas “estavam por cima”. Como meio para isso e para críticas sociais, a autora utiliza fontes literárias, contos pictorescos e festas, apontando diferenças entre as representações do desregramento feminino em cada um desses gêneros.      

Para a autora, a visão de sexo feminino desse continente nesse período histórico caracterizava-se como uma maneira de estigmatização da mulher como inferior e sem capacidade para exercer funções até então realizada somente por homens. Contribuindo para tal concepção estaria a mensagem pregada a partir da Bíblia, segundo a qual, a mulher deveria ser submissa ao homem, legitimada pelo cristianismo como mandamento divino e que ganha força com Calvino.

Outro ponto importante do texto é que a autora, para sustentar suas ideias, nos apresenta determinadas concepções histórico-filosóficas a partir de algumas ideias de imposição da mulher como sexo inferior, de Tomás de Aquino e de Aristóteles. 

Nesse sentido, a mulher, como gênero inferior, almeja funções tidas como específicas dos homens, essas são vistas como “desregradas”, pois estaria se apropriando de um lugar que não era o seu, ou seja, estariam cometendo uma “inversão sexual”.

Essa inversão teria ultrapassado as barreiras do social e chegado às artes como, por exemplo, o teatro e a literatura. Isso descamba na desconstrução da ideia de hegemonia patriarcal construída até aquele momento e início da tentativa de rompimento dos padrões estabelecidos até então, da mulher como gênero inferior e, por conseguinte, como “sexo frágil”, mulher de casa, de cozinha, recatada, com fins para o prazer de seus companheiros e para a procriação.

Portanto, o texto tem significativa relevância, uma vez que nos apresenta elementos históricos de estigmatização da mulher durante o período em questão, bem como, os dizeres, referentes às mulheres como “gênero inferior”, “sexo frágil” e ainda as rupturas, as mulheres protagonizando e ocupando espaços antes ocupados somente por homens.

Isso apontando para a importância da luta feminista no decorrer da história, pela igualdade de direitos das mulheres em relação aos homens, bem como pela quebra de padrões machistas historicamente estabelecidos.

Além disso, o texto chama para uma reflexão sobre: qual o lugar da mulher hoje após tantas lutas e resistências? Pois, pelas inúmeras experiências cotidianas, está provado que a mulher em diversas ocasiões supera os homens em diversas ocupações. Porém, ainda sofrem desigualdades, como, por exemplo, de salários, quando ocupam os mesmos cargos ocupados por homens e recebem bem menos que estes.


REFERÊNCIAS


ARANTES, Antonio Augusto. Apresentação à edição Brasileira. In: DAVIS, Natalie Zemon. Cultura do povo: Sociedade e Cultura no início da França Moderna. Trad. Mariza Corrêa. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1990.


CARVALHO, Juliana. Mulheres, Inversão e Ordem: uma discussão sobre a mulher desregrada na Idade Moderna. PET História UFS. 13 de jul. de 2020. Disponível em: <https://medium.com/pet-hist%C3%B3ria-ufs/mulheres-invers%C3%A3o-e-ordem-uma-discuss%C3%A3o-sobre-a-mulher-desregrada-na-idade-moderna-68095963a5ba>. Acesso em: 02 de jul. de 2022. 


 DAVIS, Natalie Zemon. As mulheres por cima. In: DAVIS, Natalie Zemon. Cultura do povo: Sociedade e Cultura no início da França Moderna. Trad. Mariza Corrêa. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1990.


 

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